Grandes cidades ao redor do mundo vêm redescobrindo seus rios. Em nome do progresso, muitas dessas metrópoles canalizaram ou esconderam seus cursos d’água sob avenidas e viadutos. Mas nas últimas décadas, uma nova mentalidade urbanística tem ganhado espaço: aquela que devolve o protagonismo dos rios ao cotidiano urbano, promovendo requalificação ambiental, espaços públicos mais vivos e mobilidade sustentável. Um dos exemplos mais notáveis dessa transformação é o Madrid Río, na capital da Espanha.

Uma cidade dividida por uma via expressa

Durante décadas, Madri conviveu com um problema típico das cidades do século XX: a fragmentação urbana causada por grandes infraestruturas rodoviárias. A autoestrada M-30, construída nos anos 1970, acompanhava o curso do rio Manzanares e o isolava da população. Com intenso tráfego de veículos, barulho e poluição, o trecho transformou-se numa barreira física entre o centro da cidade e os bairros da margem oposta do rio.

O Manzanares, historicamente importante para o desenvolvimento de Madri, havia se tornado um “rio invisível”, canalizado e cercado por concreto. Seu entorno era inóspito, pouco convidativo e mal aproveitado.

A virada: soterrar para reconectar

O ponto de virada veio no início dos anos 2000, quando o município decidiu enfrentar o desafio de transformar essa realidade. Sob a liderança do então prefeito Alberto Ruiz-Gallardón, a cidade iniciou um projeto ambicioso: soterrar 6 km da M-30, criando túneis para absorver o tráfego e liberar a superfície para um novo uso.

Essa decisão abriu caminho para o surgimento do Madrid Río, um parque linear de mais de 10 km de extensão que acompanha o curso do Manzanares, conectando bairros, oferecendo áreas de lazer e integrando a natureza ao tecido urbano. A obra foi concluída em 2011, após sete anos de trabalhos e um investimento de cerca de 4 bilhões de euros.

Um novo eixo verde no coração da cidade

O Madrid Río é hoje um exemplo de como o espaço urbano pode ser transformado por meio de uma visão integrada de infraestrutura, paisagismo e bem-estar social. A área conta com:

  • Ciclovias e pistas de caminhada que favorecem a mobilidade ativa; 
  • Áreas esportivas e recreativas para todas as idades; 
  • Praças, jardins e mobiliário urbano de qualidade; 
  • Replantio de dezenas de milhares de árvores e recuperação da vegetação ciliar; 
  • Passarelas e pontes que conectam bairros antes segregados. 

A presença da água, que antes era escondida, agora é protagonista. Trechos do rio foram “renaturalizados”, com leitos abertos, margens verdes e vida aquática retornando progressivamente.

Impactos urbanísticos e sociais

Os efeitos do Madrid Río foram sentidos rapidamente. A qualidade de vida nos bairros próximos aumentou, houve valorização imobiliária, crescimento de pequenos negócios locais e aumento da circulação de pedestres e ciclistas. O novo parque passou a ser utilizado como espaço de lazer, encontro, prática esportiva e atividades culturais.

Além disso, a reconexão da cidade com o rio reforçou uma nova narrativa urbana: a de que as cidades não precisam abrir mão de seus recursos naturais em nome da mobilidade motorizada. Pelo contrário, a convivência harmônica entre infraestrutura urbana e meio ambiente pode gerar múltiplos ganhos.

Um projeto premiado e replicável

O sucesso do Madrid Río chamou atenção internacional. O projeto foi premiado por entidades de arquitetura e urbanismo e passou a ser estudado como referência em diversas universidades. Ele mostrou que é possível realizar intervenções de grande escala em áreas consolidadas sem expulsar moradores ou destruir o tecido urbano — desde que haja planejamento, diálogo e foco no interesse público.

Embora tenha enfrentado críticas e desafios, como qualquer grande obra, o resultado final serviu de inspiração para outras cidades espanholas e europeias. O parque tornou-se também um atrativo turístico, e a relação dos madrilenhos com o Manzanares mudou radicalmente.

Lições para o futuro das cidades

A experiência do Madrid Río nos ensina que a reestruturação urbana vai muito além da obra física. Trata-se de um processo que envolve reconectar a cidade com sua geografia, sua história e sua população. A escolha de remover (ou soterrar) uma via expressa para dar lugar a um parque fluvial foi uma aposta política ousada – mas que hoje é vista como visionária.

O projeto também reforça a importância de espaços públicos acessíveis, verdes e multifuncionais como base para uma cidade mais resiliente, saudável e humana. Em um momento em que muitas cidades precisam se adaptar às mudanças climáticas, combater ilhas de calor e promover mobilidade sustentável, intervenções como essa apontam um caminho possível e desejável.

 

Conclusão

O caso do Madrid Río mostra que transformar cidades é possível quando se olha para o espaço urbano com coragem e sensibilidade. A decisão de valorizar o rio Manzanares e criar um parque no lugar de uma autoestrada não apenas mudou a paisagem de Madri — mudou a forma como a cidade se entende, se move e se relaciona com a natureza.

Assim como no caso do Cheonggyecheon em Seul, o Madrid Río é uma prova viva de que projetos urbanos bem pensados podem trazer benefícios duradouros e inspirar novas formas de viver nas cidades. Afinal, a reestruturação urbana não é apenas sobre construir – é sobre cuidar do que já existe e reinventar o modo como habitamos os espaços coletivos.